domingo, 17 de fevereiro de 2008

Resíduo eletrônico: redução, reutilização, reciclagem e recuperação

Projeções da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) apontam um crescimento de 18% na produção de telefones celulares em 2008, devendo atingir 78 milhões de unidades. Em 2007, foram produzidos 66 milhões de aparelhos. A popularização dos eletroeletrônicos e a rápida obsolescência dos modelos, cria o mito da necessidade de substituição, que se torna quase obrigatória para os aficionados em tecnologia e para algumas profissões específicas. No entanto, o descarte desenfreado desses produtos tem gerado problemas ambientais sérios, pelo volume, por esses produtos conterem materiais que demoram muito tempo para se decompor – a como o plástico, metal e vidro – e, principalmente, pelos metais pesados que os compõem, altamente prejudiciais à saúde humana. Além disso, faltam regras claras e locais apropriados para a deposição desses equipamentos que, em desuso, vão constituir o chamado lixo eletrônico ou e-lixo.

Faz parte desse grupo todo material gerado a partir de aparelhos eletrodomésticos ou eletroeletrônicos e seus componentes, inclusive pilhas, baterias e produtos magnetizados. Mercúrio, chumbo, cádmio, manganês e níquel são alguns dos metais pesados presentes nesses aparelhos. Na soldagem de computadores, por exemplo, usa-se chumbo; no visor do celular, mercúrio. Nas pilhas, usa-se índio (In) – metal parecido com o zinco – e manganês, depois que foram abolidos o cádmio e o mercúrio, que são mais tóxicos. Esses elementos abolidos no Brasil ainda são encontrados em pilhas que entram no país pelo mercado negro. Quando as pilhas e os equipamentos eletroeletrônicos são descartados de forma incorreta, no lixo comum, que segue para aterros sanitários, essas substâncias tóxicas são liberadas e penetram no solo, contaminando lençóis freáticos e, aos poucos, animais e seres humanos, podendo provocar efeitos como os mostrados na relação abaixo*.

Substância: Mercúrio
Tipo de contaminação: Inalação e toque
Efeito: Problemas de estômago, distúrbios renais e neurológicos, alterações genéticas e no metabolismo

Substância: Cádmio
Tipo de contaminação: Inalação e toque
Efeito: Agente cancerígeno, afeta o sistema nervoso, provoca dores reumáticas, distúrbios metabólicos e problemas pulmonares

Substância: Zinco
Tipo de contaminação: Inalação
Efeito: Provoca vômitos, diarréias e problemas pulmonares

Substância: Manganês
Tipo de contaminação: Inalação
Efeito: Anemia, dores abdominais, vômito, seborréia, impotência, tremor nas mãos e perturbações emocionais

Substância: Cloreto de Amônia
Tipo de contaminação: Inalação
Efeito: Acumula-se no organismo e provoca asfixia

Substância: Chumbo
Tipo de contaminação: Inalação e toque
Efeito: Irritabilidade, tremores musculares, lentidão de raciocínio, alucinação, insônia e hiperatividade

E o volume desse lixo no mundo já é assustador. No final do ano passado, a estimativa do grupo ambientalista Greenpeace já era de cerca de 50 milhões de toneladas. No Brasil, não se tem estimativas, mas o país segue a tendência mundial com o tempo médio de substituição de telefones celulares e computadores, bastante próximo dos países desenvolvidos: 3 anos para aparelhos celulares e 3 a 5 anos para uso comercial de computadores, segundo informações da Abinee. Os computadores substituídos nesse período são os usados em atividades fins das empresas; após esse tempo, são substituídos por novos e passam a ser usados por mais uns dois anos em outras atividades, como controle de estoque ou recepção, sendo posteriormente doados para instituições de caridade ou para projetos educacionais, na maioria das vezes.

A equação é difícil de resolver, uma vez que a tecnologia veio para ficar, os eletroeletrônicos e eletrodomésticos são sinônimo de melhoria da qualidade de vida das pessoas, que economizam trabalho manual, deslocamento, tempo na realização de suas atividades; e para funcionar, todo aparelho eletroeletrônico tem em sua constituição algum metal pesado, usado para conduzir a corrente elétrica, como explica a professora de química Maria Lúcia Pereira da Silva, do Laboratório de Sistemas Integráveis, da Escola Politécnica da USP. O problema é que os metais pesados são persistentes mesmo em quantidades muito pequenas, e contaminam áreas muito extensas. Um antigo computador 286, por exemplo, com 1600 pontos soldados, que correspondem a 4 gramas de solda de chumbo, pode levar à contaminação por arraste, uma área de 600 metros cúbicos de solo, que exigirá posteriormente a remediação, além de exposição desnecessária de trabalhadores e consumidores.

A tecnologia ainda não avançou o suficiente para que essas substâncias sejam dispensáveis nos aparelhos. O que propõem cientistas, ambientalistas e legisladores, de diferentes formas, é que se procure reduzir, reciclar, reutilizar e recuperar energia. Silva lembra que a maior parte dos metais mais importantes já foi extraída da natureza. Além disso, nos eletroeletrônicos, esses metais se encontram em uma concentração muito maior do que estavam na natureza e em um estado de purificação até mais rigoroso que na indústria farmacêutica em alguns casos. Essas razões mais do que justificam que eles sejam reciclados dos equipamentos em desuso para serem aproveitados nos novos. Esta é, segundo a professora da USP, a forma de fechar o ciclo de um setor de eletroeletrônico, reutilizando recursos naturais não renováveis e que têm um custo muito alto, afinal, trata-se de ouro, prata, cobre, ferro, alumínio, que não podem ser desperdiçados por questões ambientais e também econômicas.

O fator econômico pode ser o que impulsiona as empresas a adotarem medidas mais ambientalmente corretas nesse sentido, tanto na economia de recursos para confeccionar seus produtos quanto na competição para conquistar o consumidor mais consciente e exigente. E cada vez mais, o apelo da consciência ambiental tem servido para isso. O Greenpeace, desde agosto de 2006, divulga a cada quatro meses o Guia de Eletrônicos Verdes, indicando os fabricantes que demonstram maior preocupação com a sustentabilidade do sistema, que têm programas de recolhimento de aparelhos descartados (celulares ou pelo menos as baterias, por exemplo), que usem menos substâncias tóxicas na produção, que substituam materiais por outros menos poluentes ou tóxicos. A última edição do guia foi divulgada em novembro, e passou a incluir empresas que fabricam consoles de jogos eletrônicos e TVs.

Segundo notícia divulgada no site da ONG, “muitas empresas já conseguiram melhorar bastante seus produtos e programas de reciclagem desde o início da elaboração do guia, mas nenhuma delas ainda conseguiu oferecer uma linha inteira de produtos livres das piores substâncias químicas tóxicas ou um programa de reciclagem simples, gratuito e global para assegurar que aparelhos que não mais funcionam não sejam jogados em lixões de países em desenvolvimento como China ou Índia, como é feito atualmente. E o lixo eletrônico vem se acumulando numa velocidade impressionante nos dias de hoje”.

Outra razão que leva os fabricantes de eletroeletrônicos a encararem a política de redução, reutilização, reciclagem e recuperação energética são as legislações impostas por alguns países ou blocos de países. Em 2005, foram publicadas duas diretivas importantes na União Européia. A primeira determina que: 1) todos os fabricantes que vendam equipamento elétrico e eletrônico nos e para os países da UE coloquem etiquetas no equipamento para informar os clientes de que este deve ser reciclado e 2) certifiquem-se de que os respectivos produtos são devidamente eliminados ou reciclados após o ciclo de vida. A segunda exige que os fabricantes eliminem ou minimizem a utilização de chumbo, mercúrio, cromo hexavalente, cádmio, éteres de bifenilo polibromado e difelino em equipamento elétrico e eletrônico vendido na UE após 1 de julho de 2006. No Brasil, as leis ainda não são tão rigorosas, mas como lembra o diretor da área de meio ambiente da Abinee, Jaime Cynamon, a maioria dos fabricantes de eletroeletrônicos no Brasil é multinacional e segue as normas das matrizes que, por sua vez, seguem essas diretrizes internacionais. Quanto aos fabricantes menores ou apenas fornecedores da cadeia produtiva, para participarem do mercado, também são obrigados a seguir essas normas internacionais, pois, caso não atendam esses requisitos, não conseguem fornecer seus produtos.

Mas Cynamon lembra que o Brasil está muito descuidado com a legislação sobre essas questões. A Política Nacional de Resíduos Sólidos está tramitando desde 1991 na Câmara. Seguiu para apreciação em setembro passado, tendo recebido adendos, com atenção especial para o lixo eletrônico.

No momento, a única lei que trata de recolhimento de material eletrônico no Brasil é a Resolução 257, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 1999, que atribui aos fabricantes ou importadores de pilhas e baterias a responsabilidade pelo gerenciamento desses produtos tecnológicos que necessitam de disposição final específica, em função do perigo e dos níveis de metais tóxicos que eles apresentam e que podem causar danos ao meio ambiente e à saúde pública. Mesmo assim, o índice de recolhimento ainda está longe do satisfatório, mesmo com a ampliação de postos em bancos e supermercados. E esse recolhimento é importante porque as pilhas e baterias são recicladas e reaproveitadas.

Sustentabilidade

A idéia da sustentabilidade é partilhada por Júlio Carlos Afonso, professor do Departamento de Química Analítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que diz que 94% dos componentes dos computadores podem ser reciclados, podendo ser recuperados por desmonte e segregação dos componentes principais. Os 6% não recicláveis, segundo ele, correspondem a componentes que contêm uma grande junção de materiais de natureza química e física bastante diversa (metais, polímeros, soldas, resinas), como no caso dos circuitos impressos, que dificultam o reaproveitamento.

Afonso lembra que a existência de cerca de 30 elementos da tabela periódica num computador leva as empresas a investirem em tecnologias que visem projetar máquinas (e mesmo outros produtos eletroeletrônicos) que consumam cada vez menos elementos tóxicos e que sejam mais fáceis de serem desmontadas para a reciclagem, tal como ocorre hoje com a televisão e com o automóvel. “Há projetos em andamento em várias partes do mundo, tanto em nível acadêmico como aplicado. O maior desafio é tratar os 6% dos materiais hoje reconhecidamente não recicláveis por não existirem rotas economicamente viáveis de processamento de um material resultante de uma mistura tão complexa de elementos”, diz ele.

A Organização das Nações Unidas (ONU) fez um estudo recentemente mostrando o impacto ambiental destrutivo dos componentes dos computadores. As pressões de organismos internacionais como a ONU vêm desafiando os países a elaborarem políticas de reciclagem de computadores antigos e o prolongamento de sua vida útil. “A fabricação de um computador exige pelo menos dez vezes mais a sua massa em combustível fóssil e produtos químicos. Um simples chip eletrônico, menor que a unha de um dedo mínimo, exige 72g de substâncias químicas e 32 litros de água para ser produzido”, revela o pesquisador da UFRJ. Ele compara o eletroeletrônico com o carro e a geladeira que, em sua fabricação, precisam de apenas o dobro de sua massa em recursos naturais.

A necessidade de obedecer a rigorosas especificações de tratamento, transporte e manuseio do lixo eletrônico estimula pesquisas nesse sentido nos países desenvolvidos, segundo o professor da UFRJ. “No Brasil e em outros países emergentes, isso já não ocorre, como podemos constatar ao passar por lixões e aterros em todo o país. Estamos ainda engatinhando para despertar na sociedade brasileira uma plena consciência do desafio do lixo eletrônico ou e-lixo. O Conama parece não ter uma legislação nem um grupo de trabalho que se ocupe do lixo eletrônico”, diz ele .

Passo a passo

O primeiro passo do caminho para um sistema sustentável, conforme ensina o professor da UFRJ, seria coletar seletivamente o lixo eletrônico do restante do lixo, encaminhando-o a cooperativas ou empresas que se dediquem ao desmonte do material coletado para separação dos diversos componentes – plástico, metais, contatos elétricos etc. Eles devem ser reconhecidos e separados, etapa que exige algum treinamento. Depois de segregadas as correntes, cada uma delas segue uma destinação diferente, conforme sua natureza (recicladora de plásticos, de metais etc, incluindo-se aqui a destinação da fração não reciclável a locais apropriados). Porém, ele ressalta que os entraves para seguir esse caminho são inúmeros: falta de legislação pertinente, baixa conscientização da população, falta de incentivos a atividades de reciclagem nesse segmento (ao contrário do que ocorre com a reciclagem das latas de alumínio, plásticos, papéis, etc), logística de coleta complexa e cara, pesquisas fundamentais e aplicadas ainda incipientes, e falta de visão de muitos governos e sociedades frente ao problema do lixo eletrônico, uma verdadeira bomba ambiental para “explodir” num futuro incerto, explica, com certo desânimo frente à situação.

Mas o professor Júlio Carlos Afonso acredita que a pesquisa científica e tecnológica pode ajudar a encontrar soluções que permitam reciclar ou, pelo menos, tratar o lixo eletrônico de modo a reduzir seus impactos ambientais. “É possível desenvolver novos materiais que substituam metais pesados tóxicos hoje formulados na fabricação de diversos componentes do e-lixo, tornando ao mesmo tempo esse lixo menos tóxico e mais facilmente reciclável”. Porém, ele acredita também que nada disso pode fazer frente ao desejo compulsivo dos consumidores de terem sempre a última palavra em matéria de aparelhos eletroeletrônicos de última geração. “É a perfeita cristalização de uma sociedade movida pelo consumo de forma insustentável. Por isso, a educação e a consciência da população para um consumo mais responsável precisam acompanhar esse processo de desenvolvimento de processos e de produtos. Mas creio ser um desafio tão forte quanto o do desenvolvimento tecnológico de soluções para o e-lixo”, finaliza o professor da UFRJ.

* Fonte: Antônio Guaritá e Denise Imbroisi, da UnB.

(Envolverde/ComCiência)

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